“O problema da Igreja”[1]
Com toda a humildade que é
possível à natureza pôr em pensamentos e palavras, direi que, em política
geral, sou inteiramente contra o Dante, qualquer que tenha sido o valor das
razões puramente de carácter contemporâneo que o possam ter levado a tomar a
posição que tomou, e sem esquecer toda a coragem e toda a firmeza de convicções
que lhe foram necessárias para sustentar como sustentou as suas ideias.
Parece-me, porém, que, neste ponto, como talvez noutros, Dante se deixou levar
pelos seus impulsos de combate, as suas reacções de partidário venceram o seu
pensamento e a sua afectividade de religioso; o que tudo não deixa se ter sua
ligação com os artifícios de serviço secreto que, segundo própria exposição na Vita Nuova, usou nos seus amores com
Beatriz.
Mas, na realidade, não creio que
seja de aceitar a ideia de que o poder temporal deva estar separado do poder
espiritual; o que me parece excelente para o mundo seria que ele fosse
governado por um grande Papa que fosse simultaneamente político atento às
realidades terrenas, um santo que tivesse a contínua convivência do céu e um
artista que pusesse no coração dos homens aquele novo apelo de amor da beleza
que é possivelmente a marca mais alta do Espírito. O chefe do mundo, e cada vez
menos teremos de falar de chefes da nações, totalmente ultrapassadas nos seus
limites pelo progresso técnico e pela afirmação cada vez maior do sentimento de
fraternidade humana, o chefe do mundo deveria ser um homem cujo pensamento não
ficasse no mundo, cujo móbil fosse a reintegração no Paraíso perdido e a quem
nunca os avanços materiais e de organização social fizessem esquecer que tudo
isso é apenas a base indispensável para que haja no Universo quem possa sofrer
voluntariamente, em paga dos erros, ao contrário do que sucede hoje em que os
erros são sempre pagos por sofredores involuntários.
Esta ideia pode, no entanto,
parecer bem estranha e quase diria repulsiva tanto a irreligiosos como a homens
religiosos. Quanto aos primeiros, conviria antes de qualquer análise do
problema em si próprio que atentassem pelo menos num país em que as coisas se
passam mais ou menos deste modo, isto é, em que o chefe espiritual é também o
chefe do governo temporal, quaisquer que possam ser as prerrogativas do
primeiro-ministro como cabeça da aparelhagem administrativa e como
representante da mais numerosa corrente de opinião pública. Refiro-me
naturalmente à Inglaterra: é uma nação em que o governo é um sacramento; a
coroação dos reis não é uma cerimónia de carácter civil: é uma investidura de
carácter ordenatório. E é curioso que isso suceda num país que todos os
liberais admiram pela sua liberdade, pelo valor do seu civismo e pelo
sentimento de unidade e de colaboração com que os vários grupos defendem os seus
pontos de vista. Aqui a religião, no que tem de mais alto, e mesmo sem que nela
se fale, impregna a vida pública; neste sentido, poderíamos dizer que a
Inglaterra é um país essencialmente católico, embora não romano.
(excerto)