“O que o mundo espera”[1]
Poderia um Portugal que tivesse
sido inteiramente fiel, e nunca se é fiel senão quando se é inteiramente fiel, à
sua vocação de se descentralizar e de se transportar, na sua acção e no seu espírito,
para além do mar, poderia um Portugal, com o seu centro administrativo em
terras de África, provocar a formação da terceira força capaz de desfazer a
antinomia que se levantou no mundo, e se levanta em cada espírito individual,
entre o bloco soviético, que traz consigo uma forma de economia de futuro adaptável
às exigências da técnica e aos desejos matérias da humanidade, e o bloco
norte-americano que defende, com todas as limitações que possa ter, o direito à
liberdade de que o homem não pode prescindir.
A primeira aproximação teria de
se fazer entre a Federação portuguesa e a Federação brasileira, para onde
passou, pela massa de população, pelo peso da economia e pela importância no âmbito
das decisões americanas e mundiais, o centro de gravidade do mundo de fala
portuguesa. É esta uma realidade de que o próprio Brasil se não apercebeu ainda
e que é naturalmente mais difícil de entender a gente formada no ambiente
limitado do Portugal continental. E é, no entanto, uma realidade de que ambos
os países precisam de tomar inteira e rápida consciência, sob pena de nem
Portugal nem o Brasil poderem cumprir a sua missão. Têm de se aproximar os dois
grandes núcleos, para além de toda a zona de acordos e tratados, que só são de
entender quando se lavram entre estrangeiros; no dia em que Portugal se
descentralizar e de deseuropeizar, equiparando-se por aí ao Brasil, que também
por essa altura poderá ter deixado de ser muito, e às vezes demasiado, seguidor
de linhas europeias, quer sejam as europeias da própria Europa, quer sejam as
europeias da América do Norte, no dia em que duas Federações sejam
originalmente e orgulhosamente tropicais, nesse dia, o que deve existir não é
nenhum acordo, sempre de algum aspecto comercial, mas uma inteira união de dois
blocos: uma Confederação dos povos de língua portuguesa.
De qualquer modo, a presença do
Brasil é desde já indispensável nas terras portuguesas de além-mar. Ninguém
sabe quais os caminhos que a História escolherá para se realizar e acontece
mesmo muito frequentemente que ela vai por fora do que poderíamos chamar o
espaço de inteligência do homem. Pode ser que algum dia, pelas hesitações ou os
erros políticos da metrópole ou pelos imprevistos, já mais ou menos previstos,
dos acontecimentos europeus, as antigas colónias se tenham de tornar independentes
sem o acordo de Portugal metropolitano ou até com sua oposição; nesse momento,
que será fatalmente de ressentimentos e de represálias, só a presença do
Brasil, sobre o qual não haverá nenhuma suspeita de imperialismo ou de racismo,
poderá manter as novas nacionalidades dentro da órbita das tradições da cultura
portuguesa e ajudá-las a passar mais rapidamente pelas experiências de
autonomia que o próprio Brasil, sem guia algum, teve já de afrontar na sua história.
Depois de se construir uma
Confederação de povos de língua portuguesa, o que será possível somente com um
Portugal centrado nos trópicos, a tarefa seguinte será a de trazer à sua
unidade fundamental o mundo hispânico. Até agora, e salvo intervalos brevíssimos
em que, por um motivo ou outro, não tem sido Castela capaz de manter sob o seu
domínio os outros povos espanhóis, a Península, exceptuando naturalmente
Portugal, tem conservado a sua unidade à custa da sua liberdade. Galiza e
Catalunha e o país dos Bascos, para só falarmos dos de maior individualidade, têm
sofrido há séculos a ocupação de um país estrangeiro que lhes não tem dado
direito ao livre uso de sua língua, de sua literatura, de sua mentalidade; que
lhes não tem dado direito ao livre desenvolvimento de sua história; que nunca
os deixou colaborar, por serem livres na invenção do vário, numa real unidade
de Espanha.
É evidente que se trata em
primeiro lugar de lhe reconhecer o direito de voz individual no conjunto
espanhol; mas é também evidente que, dadas as características psicológicas dos
povos espanhóis e dados os ambientes económicos que pesam sobre a parte
central, a liberdade de modo algum significará a concórdia e a possibilidade de
um trabalho em comum; toda a tentativa de Castela para manter unidas as outras
regiões trará suspeitas das antigas dominações, como toda a tentativa dos
recentemente libertados parecerá a seus irmãos uma pura substituição da Meseta.
E aqui entra, como meio de solução, o que foi, desde o início da história de
Portugal, uma das limitações da sua acção: o afastamento da Galiza; a primeira
federação peninsular seria a da Galiza com o Portugal continental, e é à volta
desse núcleo que se poderia penar em dispor os bascos e os catalães e a
mourisca gente do Sul; Castela só viria por fim, quando já não fosse possível a
ninguém a hostilidade ou o receio e pudessem os castelhanos, livremente também,
trazer ao conjunto a audácia, a energia e, agora, a construtora e inovadora
violência de seu temperamento.
A unidade dos povos espanhóis, ou
pelo menos de língua espanhola, da América, com todo o enriquecimento trazido
pelas raças indígenas, onde elas puderam escapar da violência das ocupações,
terá, como a da Península se faria em torno de Portugal, de se realizar na América
em torno do Brasil; processo naturalmente mais longo e mais difícil, porque terá
de assentar numa real independência económica de cada uma dessas nações, numa
estabilidade de regime político, num “status” interno que traga a seu devido
lugar os povos indígenas, e depois na constituição de federações regionais,
antes que se possa pensar em qualquer espécie de acção comum. Seja como for, a
realização da unidade peninsular e a influência de uma comunidade que
abrangeria todos os territórios espanhóis ou de língua portuguesa da Europa, África
e Ásia e o Brasil, não poderia deixar de se fazer sentir num sentido agregador
e disciplinador sobre os povos hispano-americanos.
[1] In O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 27/10/1957.