terça-feira, 21 de agosto de 2012

"Filosofia Nacional"


De vez em quando se fica muito satisfeito quando se verifica estar-se cultivando qualquer ramo ou corrente de filosofia que de algum modo corresponde a movimento surgido e desenvolvido no estrangeiro; quando nos atinge a última espuma de vaga surgida bem ao largo, já nos parece que temos, excelentemente, cumprido o nosso dever e o nosso gosto de filosofar; somos vítimas de moda ou somos inconscientes de dependência intelectual daqueles meios que supomos mais cultos do que o nosso: mas tudo se passa como se nada mais houvesse a fazer; como se eternamente nos competisse ir a reboque de correntes estrangeiras. Aqui, como em muitos outros pontos, o mal tem sido o de ir atrás do que aparece vindo de fora; o que, de certo modo, procede de uma ignorância ou de uma desvalorização de tudo quanto a tradição nos legou.
É de facto curiosa a ideia com que se sai de uma curso de filosofia, entre nós ou em Portugal, quanto ao que tem sido a actividade filosófica em língua portuguesa. Falam-nos de gregos e de franceses, de ingleses e de alemães, e, quando muito, se citam os que em âmbito nacional seguiram ou divulgaram as correntes estrangeiras, na maior parte dos vezes sem que se tome sequer o trabalho de pôr em relevo o que pode ter havido de original em certos pormenores de pensamento ou, mais importante, no ambiente geral em que a importação se desenvolveu; as cadeiras de história da filosofia são-nos quase, exclusivamente, de história da filosofia europeia, pondo aqui a América do Norte como um desenvolvimento da Europa; a pensadores nossos nem se alude; e nem, por outro lado, se levanta o problema da possibilidade filosófica de nossa gente.
Por aqui se deveria, creio eu, principiar (...).


[1] In O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 09/03/1958.

domingo, 19 de agosto de 2012

Poder temporal e espiritual


“O problema da Igreja”[1]

Com toda a humildade que é possível à natureza pôr em pensamentos e palavras, direi que, em política geral, sou inteiramente contra o Dante, qualquer que tenha sido o valor das razões puramente de carácter contemporâneo que o possam ter levado a tomar a posição que tomou, e sem esquecer toda a coragem e toda a firmeza de convicções que lhe foram necessárias para sustentar como sustentou as suas ideias. Parece-me, porém, que, neste ponto, como talvez noutros, Dante se deixou levar pelos seus impulsos de combate, as suas reacções de partidário venceram o seu pensamento e a sua afectividade de religioso; o que tudo não deixa se ter sua ligação com os artifícios de serviço secreto que, segundo própria exposição na Vita Nuova, usou nos seus amores com Beatriz.
Mas, na realidade, não creio que seja de aceitar a ideia de que o poder temporal deva estar separado do poder espiritual; o que me parece excelente para o mundo seria que ele fosse governado por um grande Papa que fosse simultaneamente político atento às realidades terrenas, um santo que tivesse a contínua convivência do céu e um artista que pusesse no coração dos homens aquele novo apelo de amor da beleza que é possivelmente a marca mais alta do Espírito. O chefe do mundo, e cada vez menos teremos de falar de chefes da nações, totalmente ultrapassadas nos seus limites pelo progresso técnico e pela afirmação cada vez maior do sentimento de fraternidade humana, o chefe do mundo deveria ser um homem cujo pensamento não ficasse no mundo, cujo móbil fosse a reintegração no Paraíso perdido e a quem nunca os avanços materiais e de organização social fizessem esquecer que tudo isso é apenas a base indispensável para que haja no Universo quem possa sofrer voluntariamente, em paga dos erros, ao contrário do que sucede hoje em que os erros são sempre pagos por sofredores involuntários.
Esta ideia pode, no entanto, parecer bem estranha e quase diria repulsiva tanto a irreligiosos como a homens religiosos. Quanto aos primeiros, conviria antes de qualquer análise do problema em si próprio que atentassem pelo menos num país em que as coisas se passam mais ou menos deste modo, isto é, em que o chefe espiritual é também o chefe do governo temporal, quaisquer que possam ser as prerrogativas do primeiro-ministro como cabeça da aparelhagem administrativa e como representante da mais numerosa corrente de opinião pública. Refiro-me naturalmente à Inglaterra: é uma nação em que o governo é um sacramento; a coroação dos reis não é uma cerimónia de carácter civil: é uma investidura de carácter ordenatório. E é curioso que isso suceda num país que todos os liberais admiram pela sua liberdade, pelo valor do seu civismo e pelo sentimento de unidade e de colaboração com que os vários grupos defendem os seus pontos de vista. Aqui a religião, no que tem de mais alto, e mesmo sem que nela se fale, impregna a vida pública; neste sentido, poderíamos dizer que a Inglaterra é um país essencialmente católico, embora não romano.

(excerto)


[1] In O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 03/11/1957.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

"Se o Futuro é a Vida, vivamo-la já, que o tempo é pouco"

"No político, distingo dois momentos, o do presente e o do futuro. Principiando pelo segundo desejo o desaparecimento do Estado, da Economia, da Educação, da Sociedade e da Metafísica; quero que cada indivíduo se governe por si próprio, sendo sempre o melhor que é, que tudo seja de todos, repousando toda a produção por um lado no amador, por outro lado na fábrica automática, que a criança cresça naturalmente segundo suas apetências sem as várias formas da cópia e do ditado que têm sido as escolas, públicas e de casa, que o social com suas regras, entraves e objectivos dê lugar ao grupo humano que tenha por meta fundamental viver na liberdade e que todos em vez de terem metafísica, religiosa ou não, sejam metafísica. Tudo virá, porém, gradualmente, já que toda a revolução não é mais do que um precipitar de fases que não tiveram tempo de ser. Por agora, para o geral, democracia directa, economia comunitarista, educação pela experiência da liberdade criativa, sociedade de cooperação e respeito pelo diferente, metafísica que não discrimine quaisquer outras, mesmo as que pareçam antimetafísicas. Mas, fora do geral, para qualquer indivíduo, o viver, posto que no presente, já quanto possível no futuro: eliminando o seu supérfluo, cooperando, aceitando o que lhe não seja idêntico – e muito crítico quanto a este - , não querendo educar, mas apenas proporcionando ambiente e estímulos, e procurando tão largo pensamento que todos os outros nele caibam. Se o Futuro é a Vida, vivamo-la já, que o tempo é pouco: que a Morte nos colha vivos, e não, como é de hábito, já meio mortos; aliás, suicidados" - Agostinho da Silva, Pensamento à Solta, in Textos e Ensaios Filosóficos II, pp. 175-176.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

De Agostinho: para uma "Confederação de povos de língua portuguesa"

 

“O que o mundo espera”[1]
Poderia um Portugal que tivesse sido inteiramente fiel, e nunca se é fiel senão quando se é inteiramente fiel, à sua vocação de se descentralizar e de se transportar, na sua acção e no seu espírito, para além do mar, poderia um Portugal, com o seu centro administrativo em terras de África, provocar a formação da terceira força capaz de desfazer a antinomia que se levantou no mundo, e se levanta em cada espírito individual, entre o bloco soviético, que traz consigo uma forma de economia de futuro adaptável às exigências da técnica e aos desejos matérias da humanidade, e o bloco norte-americano que defende, com todas as limitações que possa ter, o direito à liberdade de que o homem não pode prescindir.
A primeira aproximação teria de se fazer entre a Federação portuguesa e a Federação brasileira, para onde passou, pela massa de população, pelo peso da economia e pela importância no âmbito das decisões americanas e mundiais, o centro de gravidade do mundo de fala portuguesa. É esta uma realidade de que o próprio Brasil se não apercebeu ainda e que é naturalmente mais difícil de entender a gente formada no ambiente limitado do Portugal continental. E é, no entanto, uma realidade de que ambos os países precisam de tomar inteira e rápida consciência, sob pena de nem Portugal nem o Brasil poderem cumprir a sua missão. Têm de se aproximar os dois grandes núcleos, para além de toda a zona de acordos e tratados, que só são de entender quando se lavram entre estrangeiros; no dia em que Portugal se descentralizar e de deseuropeizar, equiparando-se por aí ao Brasil, que também por essa altura poderá ter deixado de ser muito, e às vezes demasiado, seguidor de linhas europeias, quer sejam as europeias da própria Europa, quer sejam as europeias da América do Norte, no dia em que duas Federações sejam originalmente e orgulhosamente tropicais, nesse dia, o que deve existir não é nenhum acordo, sempre de algum aspecto comercial, mas uma inteira união de dois blocos: uma Confederação dos povos de língua portuguesa.
De qualquer modo, a presença do Brasil é desde já indispensável nas terras portuguesas de além-mar. Ninguém sabe quais os caminhos que a História escolherá para se realizar e acontece mesmo muito frequentemente que ela vai por fora do que poderíamos chamar o espaço de inteligência do homem. Pode ser que algum dia, pelas hesitações ou os erros políticos da metrópole ou pelos imprevistos, já mais ou menos previstos, dos acontecimentos europeus, as antigas colónias se tenham de tornar independentes sem o acordo de Portugal metropolitano ou até com sua oposição; nesse momento, que será fatalmente de ressentimentos e de represálias, só a presença do Brasil, sobre o qual não haverá nenhuma suspeita de imperialismo ou de racismo, poderá manter as novas nacionalidades dentro da órbita das tradições da cultura portuguesa e ajudá-las a passar mais rapidamente pelas experiências de autonomia que o próprio Brasil, sem guia algum, teve já de afrontar na sua história.
Depois de se construir uma Confederação de povos de língua portuguesa, o que será possível somente com um Portugal centrado nos trópicos, a tarefa seguinte será a de trazer à sua unidade fundamental o mundo hispânico. Até agora, e salvo intervalos brevíssimos em que, por um motivo ou outro, não tem sido Castela capaz de manter sob o seu domínio os outros povos espanhóis, a Península, exceptuando naturalmente Portugal, tem conservado a sua unidade à custa da sua liberdade. Galiza e Catalunha e o país dos Bascos, para só falarmos dos de maior individualidade, têm sofrido há séculos a ocupação de um país estrangeiro que lhes não tem dado direito ao livre uso de sua língua, de sua literatura, de sua mentalidade; que lhes não tem dado direito ao livre desenvolvimento de sua história; que nunca os deixou colaborar, por serem livres na invenção do vário, numa real unidade de Espanha.
É evidente que se trata em primeiro lugar de lhe reconhecer o direito de voz individual no conjunto espanhol; mas é também evidente que, dadas as características psicológicas dos povos espanhóis e dados os ambientes económicos que pesam sobre a parte central, a liberdade de modo algum significará a concórdia e a possibilidade de um trabalho em comum; toda a tentativa de Castela para manter unidas as outras regiões trará suspeitas das antigas dominações, como toda a tentativa dos recentemente libertados parecerá a seus irmãos uma pura substituição da Meseta. E aqui entra, como meio de solução, o que foi, desde o início da história de Portugal, uma das limitações da sua acção: o afastamento da Galiza; a primeira federação peninsular seria a da Galiza com o Portugal continental, e é à volta desse núcleo que se poderia penar em dispor os bascos e os catalães e a mourisca gente do Sul; Castela só viria por fim, quando já não fosse possível a ninguém a hostilidade ou o receio e pudessem os castelhanos, livremente também, trazer ao conjunto a audácia, a energia e, agora, a construtora e inovadora violência de seu temperamento.
A unidade dos povos espanhóis, ou pelo menos de língua espanhola, da América, com todo o enriquecimento trazido pelas raças indígenas, onde elas puderam escapar da violência das ocupações, terá, como a da Península se faria em torno de Portugal, de se realizar na América em torno do Brasil; processo naturalmente mais longo e mais difícil, porque terá de assentar numa real independência económica de cada uma dessas nações, numa estabilidade de regime político, num “status” interno que traga a seu devido lugar os povos indígenas, e depois na constituição de federações regionais, antes que se possa pensar em qualquer espécie de acção comum. Seja como for, a realização da unidade peninsular e a influência de uma comunidade que abrangeria todos os territórios espanhóis ou de língua portuguesa da Europa, África e Ásia e o Brasil, não poderia deixar de se fazer sentir num sentido agregador e disciplinador sobre os povos hispano-americanos.


[1] In O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 27/10/1957.